terça-feira, fevereiro 02, 2021

Cream & Cracker

Espreitado pela morte e  perturbadores pesadelos fruto de uma vida solitária, o anão e contador aposentado, seo Antônio, na casa dos oitenta anos, há oito, adotou dois vira-latas para ter a quem olhar no momento do seu finamento. Os batizou de Cream(uma fêmea pequena e malhada) e   Cracker (um macho de porte médio e cor caramelo).

Seo Antônio estava quase cego, surdo e constantemente tinha  lapsos de memória que o tiravam do “ar” por horas. Cansado de esperar a esquelética de foice e capuz preto, resolveu encontrá-la. Chamou os dois companheiros a quem estimava como filhos, explicou o que estava prestes a fazer, antes do ato, fritou na gordura de porco quatro suculentas bistecas, dividiu-as entre os  “rebentos”. 

Após a refeição disse as últimas palavras sob os olhares empanturrados de Cream e do Cracker: “Quem trabalha e mata a fome, não come o pão de ninguém, mas quem ganha mais do que come, sempre come o pão de alguém”.

Após alguns minutos, entrou em casa, trancou a porta, amarrou o cinto na maçaneta e no pescoço, subiu no pequeno banco e pulou, a cinta arrebentou e Antônio bateu a  cabeça no chão e agonizou por horas até encontrar-se com o destino final.

Francisco, um sobrinho, que há dois anos havia “desaparecido”, resolveu visitar o tio para pedir dinheiro emprestado e encontrou os “perros” desesperados, latindo sem parar, ao entrar na casa tentou socorrer Antônio que já estava morto. 

O afilhado Chico não chorou, nem lamentou ou simplesmente ficou triste. Diante do corpo do tio, sorriu e procurou algo de valor na casa antes de chamar o “rabecão” e iniciar os preparativos do enterro.  Ao desarrumar as gavetas, armários, encontrou um envelope com o seu nome. Dentro havia uma carta com detalhes sobre como deveria ser o enterro, cinco mil reais para as despesas do funeral,o testamento deixando a casa e R$250 mil depositados no banco e um pedido para cuidar dos cães. 

Francisco nunca esteve tão feliz, gritava palavrões, engolia seco para cantar arrotando e ao perceber um pedaço de caibro próximo da porta da cozinha,  o pegou,  e disse a si mesmo “vou cuidar de porra nenhuma” e rumou para o quintal.

O sangue que correu nas veias de Antônio era o mesmo que corria nas artérias de Chico,  a estirpe familiar que  afagou outrora, agora queria dizimar Cream e o Cracker. Chico foi bem recebido por Cream  e desferiu o primeiro golpe, a cadelinha se esquivou mas foi atingida na costela e gritou tão agudamente chamando a atenção de Cracker, ainda gemendo pela paulada tomada a malhada tentava desviar de outras pancadas quando viu-se encurralada por Chico, que ergueu o braço até onde podia  e mirava a cabeça da cadela, Cracker correu para ajudar a companheira e por instinto fixou os 42 dentes na coxa esquerda do sobrinho. O homem instantaneamente soltou a arma empunhada e virou-se para defender-se, grudado a coxa, Cracker fez a rotação contrária.

 Os precursores berros da felicidade pela herança recebida contrastava com os alaridos da dor excruciante da pele sendo rasgada e dos dentes dilacerando o nervo de sua perna. Desamparado no chão, cercado por um “mar” vermelho, em compulsivas lágrimas desesperadas pelas dores,  Chico gritava por ajuda.

Os urros do sobrinho de seo Antônio pedindo ajuda chamou a atenção dos vizinhos, para socorrer o ferido deixaram o portão aberto. Era a  deixa para  Cracker e a combalida Cream fugirem em disparada, quando pararam de correr não sabiam onde estavam.

Abrigaram-se em uma praça não gramada, pouco arborizada, rodeada por casas imponentes. No fim da madrugada, uma senhora, manca, acima do peso e com um lenço na cabeça andou da casa frente a praça aos cachorros, que sonolentos não esboçaram reação, a mulher trazia  um balde com água fervida  e jogou sem atingi-los, ambos deram no pinote da improvisada moradia.

Nunca haviam passado por tantas agruras, estavam exaustos e famintos, a fêmea mancava da pata traseira.  Percorreram alguns quilômetros e avistaram um caminhão descarregando carne para abastecer um supermercado.Dois homens recebiam as caixas e as transportavam para dentro do estabelecimento, os dois desabrigados, lamberam os lábios observando as dezenas de peças de carne. 

Cracker se distraiu cheirando outro cachorro que passeava com o seu tutor, quando um cidadão de terno acariciou a sua cabeça, falando palavras doces, era o gerente do mercado. 

Cream, estava com muita fome, quando ouviu o chamado de  um senhor barrigudo, de cabelos brancos e um sotaque impossível de ser identificado. A cadelinha caminhou na direção do gorducho com o rabo abanando e quando estava bem próxima do indivíduo, sentou, esperando um agrado, mas recebeu um tabefe com a mão espalmada que a derrubou. 

Cream chorou mais por ter batido a costela machucada do que propriamente da bofetada. Cracker por um minuto apenas observou o humano expulsar a sua parceira.   O gerente e o tutor do cão ficaram perplexos,  mas nada  fizeram. Cream havia fugido para o meio da rua, quando um ônibus destinado ao Jardim Celestial buzinou e brecou em cima do animal, que ainda mais assustado sumiu sem rumo.  

Sob a omissão de quem poderia agir, Cracker reage se jogando sob a criatura que mal tratará à amiga, impôs as duas patas no peito do barrigudo. O homem rezava e chorava por um tardio arrependimento e Cracker sentiu um certo prazer naquela intimidação, rosnava cada vez mais alto. Intimidado, o esbofeteador que suplicava por compaixão virou o rosto para a esquerda, deixando a opulenta bochecha livre para o recebimento dos dentes de Cracker.

Com o focinho apinhado de sangue e no curso da escapadela, Cracker avistou uma caixa com inúmeros pacotes de linguiça e  não se fez de rogado para surrupiar um. O funcionário do comércio, próximo aos sacos de carne, até fez uma menção de impedir o furto, mas o gerente impediu dizendo: “ O desgraçado mereceu a mordida”.  

Cracker carregava o saco de carne a procura de Cream, conseguindo rastreá-la pelo olfato. Encontrou-a debaixo de um viaduto, solitária, encolhida e tremendo. O macho rasgou o pacote, Cream comeu dois pedaços e Cracker, devorou treze. Dormiram por horas, ao despertar avistaram a uma certa distância quatro vira-latas famintos, que espiavam a carne que havia sobrado, mas não se atreveram a se aproximar. Cracker e a Cream foram embora e a carne ficou.

Por cinco dias andaram, paravam apenas para se alimentarem do lixo alheio e para descansar. Cream mancava, sentia dores e respirava com dificuldades.  Encontraram uma casa abandonada, vizinhos deixavam água e ração para a dupla. Após 20 dias, alguém chamou o serviço municipal de recolhimento de animais, a famigerada carrocinha.  Capturados foram transportados para um abrigo de 10 metros de profundidade, com cinco de largura, fazendo companhia a outros trinta cachorros. 

Três dias de confinamento e a cadelinha Cream mal conseguia se levantar, comia pouco e todos os dias pela manhã recebia um jato frio de dois homens, que limpavam o abrigo municipal com uma máquina pressurizadora de água . 

A má alimentação, as péssimas condições de higiene e as dores constantes pioraram a saúde de Cream, que não se hidratava, apenas gemia,  tremia e respirava com extrema dificuldade.  Cracker tentava animá-la, mas Cream ficava deitada por horas sem se mexer.

No meio da noite, Cream se levantou e deu dois passos até Cracker, que tinha cochilado, lambeu por três vezes o focinho do amigo que acordou rapidamente, feliz com a reação da companheira. Por um tempo ambos trocaram lambidas, Cream se hidratou, comeu dois grãos de ração e  voltou a dormir.

Cracker acordou e  percebeu que era observado pelo cão mais velho do abrigo, se entreolharam, nenhum latido ou ruído foram expressados. Deu uma volta na cela e percebeu que o olhar do idoso ainda o perseguia, caminhou para conferir o estado de saúde da companheira, cheirou e não gostou daquele odor que vinha da amiga, com a pata a sacudiu e nenhum movimento,  lambeu o focinho da parceira  diversas vezes e um som começou a ser ouvido da sua boca, parecido com um choro, rendido e de  baixo volume.

Cracker latiu por uma hora e quando parou, ao seu redor todos os cães olhavam a cena, ele avançou sobre os companheiros de cela, como se fizesse um pedido – “façam alguma coisa” – latia para um, corria para outro, mas nada poderia ser feito.

Cracker olhou para o corpo de Cream  e soltou um uivo tão forte e triste, que arrepiou quase todos os funcionários do centro de zoonose, em seguida todos os cães uivaram e um silêncio nunca feito antes no canil se perpetuou.

Alertados pelos uivos e posteriormente do silêncio, os carcereiros correram para a jaula e notaram que a Cream estava morta. O homem mais alto e forte disse: “tira essa merda daí”. O pequeno até que tentou, com um saco de lixo se aproximar da Cream, mas recebeu como “cumprimento”  a exposição de todos os dentes  de Cracker. A dupla da carceragem retornou ao canil armados com dois enforcadores.

Dentro do confinamento tentaram  encurralar Cracker, que reagia e por horas não obtiveram sucesso.Exaurido, Cracker baixou a guarda e foi fisgado pelo estrangulador, em seguida o segundo enforcador foi empunhado no seu pescoço. Os dois cuidadores, que mais pareciam com torturadores, erguiam Cracker do chão que se debatia violentamente.

A cena era desesperadora e os cães, que até então apenas observavam,  começaram a latir, o mais velho dos cachorros, mesmo sem dentes, mordeu o tornozelo do homem forte e nem cócegas conseguiu promover no carrasco, que se defendeu desferindo um coice no ancião, que voou contra a grade caindo no chão sem vida .

A brutalidade despertou a agressividade nos outros cachorros, que atacaram os agressores do “Velho” e de Cracker, com tantas mordidas simultâneas que nem tempo de reagir os carcereiros tiveram, a não ser gritar enquanto seus corpos eram esquartejados.

Paradoxalmente, o coice que matou o cão ancião resultou na abertura do portão da saída do canil Os 27 cães escaparam, todos lambuzados de sangue, distribuindo mordidas nos outros funcionários e a quem tentasse impedi-los da fuga. 

Cracker foi o único que ficou, mesmo com os dois enforcadores na sua garganta conseguiu participar do ataque e entre os seus dentes havia um nariz decepado. Mas os enforcadores no pescoço o sufocava, sua língua estava roxa, faltava o ar, mesmo assim conseguiu caminhar até o corpo de Cream, deitou e tossiu por algumas vezes até  engasgar com o  próprio sangue,  fechou os olhos e sua respiração não foi mais notada.

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