Imagem publicada no Facebook de André Ike Siqueira
Após 47 anos, a pergunta é a mesma
Qual dirigente demitira um treinador com 100% de
aproveitamento em competições oficiais? Ou derrubaria um técnico após recuperar
a Seleção Brasileira vindo do seu maior fracasso em Copas do Mundo? E dispensaria
o comandante do selecionado que venceu 14 duelos, perdeu duas partidas e
empatou uma, cujo time marcou 54 gols, com média de 3,17 de tentos marcados e
sofreu apenas 0,88 gol por jogo?
O
cartola que tomou está atitude foi João Havelange (morto em 2016) e o demitido
João Saldanha, que em 03 de julho de 2017, comemoraria o seu centenário
se estivesse vivo ( João Saldanha faleceu em 1990).
O
gaúcho de Alegrete aceitou o convite da CBD (Confederação Brasileira de
Desportos), para assumir o comando do time brasileiro após o pior resultado da
Seleção em uma Copa do Mundo: o fiasco na disputa do mundial de 1966, quando o
escrete nacional foi desclassificado na primeira fase. Posteriormente, amistosos
com resultados pífios e o vai e vem de técnicos agravaram a crise e a descrença
na Seleção Brasileira.
Após
a competição onde a Inglaterra sagrou-se campeã pela primeira vez, Saldanha
empunhou o seu microfone no rádio e na TV e escrevia suas colunas no “Jornal do Brasil”
denunciando e acirrando com críticas ferrenhas a desorganização e a corrupção
do futebol brasileiro.
Sonia
Saldanha, filha do jornalista e técnico, lembra do momento que o gaúcho comunicou
a família sobre o convite de comandar a Seleção Brasileira: “Papai reuniu todos
os filhos e disse: “Eu vou aceitar, mas não vou terminar o trabalho. Eu tenho
contribuição para dar. Eu estou apenas informando a vocês” ”.
Em
1969, o Brasil vivia uma ditadura militar cujo Presidente da República era um
General que gostava muito de futebol, Emílio Garrastazu Médici. João era
militante do Partido Comunista Brasileiro, participou de revoltas populares,
não se negava a criticar o regime em plena censura da imprensa. Então, por que
convidá-lo?
O próprio Saldanha havia declinado dois convites
para assumir o comando da Seleção Brasileira (1958 e 1968). Mas em 1969, um
pessimismo tomava conta do time bicampeão do mundo, que havia feito uma péssima
campanha em 1966 e o país vivendo uma ditadura militar violenta, com presos
políticos e mortes por tortura. Saldanha acreditava que poderia ser útil para
política e para o futebol.
“A
ditadura queria usar o futebol como cortina de fumaça para os crimes políticos
que cometia e incrementava a campanha ufanista do “Brasil ame-o ou deixe-o” e
João não iria fazer esse papel de puxa-saco dos militares”, diz André Iki
Siqueira, jornalista e biógrafo de João Saldanha.
André
na biografia escrita em 2007 - “João Saldanha, uma vida em jogo”- publica um
depoimento de Havelange negando que a escolha de João tenha sido dele: “Quando
tivemos de compor a comissão técnica da CBD para preparar a seleção, como
presidente dei a chefia ao Dr. Antonio do Passo que teve a liberdade de fazer a
escolha dos elementos de compô-la. Portanto quem fez o convite ao Sr. João
Saldanha foi o Dr. do Passo”.
No mesmo livro, André colheu o depoimento do
jornalista Luiz Mendes, falecido em outubro de 2011: “Pois Havelange colocou
justamente o inimigo no poder, tirou desse inimigo o poder de fogo. E todos da
imprensa não contestaríamos a escolha de um companheiro nosso, que tinha um
currículo de técnico e havia sido campeão pelo Botafogo em 1957. Não dava para
contestar isso”.
O
jornalista Juca Kfouri, colunista da Folha de S.Paulo , tem o pensamento na
mesma linha de Mendes: “Era um jeito de tentar a cumplicidade da imprensa”.
Após o sucesso de João Saldanha nas eliminatórias
da Copa do Mundo de 1970, a Seleção Brasileira conquistou vitórias nos seis
jogos que disputou. Cem por cento de aproveitamento.
Para
a CBD, a crise no futebol havia terminado e outra começava. O temperamento
forte de João com a forte influência do Governo Militar na Confederação
Brasileira de Desportos (Em 1979, passou a se chamar Confederação Brasileira de
Futebol (CBF)), que não via com bons olhos um militante comunista ter a
oportunidade de conquistar um título de Copa do Mundo.
O
jornalista Carlos Ferreira Vilarinho, autor do livro “Quem derrubou João
Saldanha”, da editora Livrosdefutebol.com, publicado em 2010, contou a
reportagem um episódio que contribuiu para a demissão: “Em 28 de fevereiro de
1970, Armando Nogueira informou no Jornal do Brasil que uma das “fixações” de
Médici era o artilheiro do Atlético Mineiro, cuja convocação já defendera numa
conversa com o chefe de relações públicas da presidência, um coronel do
Exército (palpite publicado por Armando Nogueira em coluna de 28 de janeiro).
Médici sustentava que na Seleção havia lugar para Dario “como precioso
suplente”. Pois bem, em três de março, um repórter da TV Gaúcha, afiliada da TV
Globo, lançou a pergunta desafiadora: “Saldanha, o presidente Garrastazu Médici
está no Rio Grande do Sul e ele parece que havia sugerido o nome de Dario para
ser convocado. O que você acha da sugestão do presidente? Saldanha respondeu:
“O Brasil tem oitenta ou noventa milhões de torcedores e gente que gosta de
futebol. É um direito que todos têm. Aliás, eu e o presidente, ou o presidente
e eu, temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos. Somos gremistas. Gostamos de
futebol. E nem eu escalo o ministério, nem o presidente escala time. Então, tá
vendo que nós nos entendemos muito bem””.
André Iki Siqueira não tem dúvidas sobre quem tomou
a decisão de demitir o treinador: “Eu não tenho dúvida que João foi derrubado
do comando da Seleção pelos militares, mas não há documentos que comprovem uma
ordem de Médici, a quem João considerava o maior assassino da história do país
por ter permitido a morte de vários de seus camaradas do PCB e de outras
organizações de esquerda, além de seqüestros e torturas, sempre denunciadas por
João, mesmo enquanto dirigia a Seleção. O sucesso de João na Seleção virou um problema
de Estado”.
O
Ministério da Educação e Cultura (MEC), que tinha como titular da pasta, Jarbas
Passarinho. Também o responsável à época pela para “tutoriar” a CBD.
A
filha de João, Sonia, lembra que o principal opositor as ideias do pai era “O Ministro
que voava (Passarinho)”, este que não admitia que um comunista ganhasse a copa,
representando o povo e a seleção.
Uma
versão diferente tem o jornalista Vital Bataglia, então editor e repórter do
Jornal da Tarde: “Não, não foi o ditador Médici e sim o próprio João. Ele não
agüentava mais o relacionamento com Pelé e outros jogadores”.
A
polêmica entre João Saldanha e Pelé causou muita agitação na imprensa. No
documentário “João” com direção de André Iki Siqueira e Beto Macedo, de 2008,
tem um depoimento do Rei do Futebol em 1969, aprovando João: “Porque ele
(Saldanha) não é técnico de nenhuma equipe. (Saldanha) não tem vínculo com
nenhuma equipe do Brasil, ele pode fazer e desfazer sem preocupação de
agradar A ou B e é por isso que sou a favor totalmente de Saldanha na Seleção
".
“A miopia de Pelé (na vista direita - 2,2 graus)
fora diagnosticada pelos médicos da CBD em 1958. Quando acabou a reunião do dia
17 de março de 1970 – que consumou sua demissão – Saldanha tomou o elevador e
deixou o prédio da CBD. Antes de entrar no carro, revelou: “Saí porque no meu
time Pelé não jogava mais. Nas 17 partidas pela seleção brasileira em que ele
atuou esteve sempre mal. Nos jogos noturnos, então, nem se fala. O crioulo
perdia inteiramente a visão de campo. Expliquei ao médico [Lídio Toledo]
que assim que Pelé voltasse à sua melhor forma física, teria chance de voltar
ao time. Como estava é que não seria mais possível. Pessoalmente, Pelé nada tem
a ver com isso. Se está mal, não é por culpa dele. Jamais poderia acusá-lo de
má vontade comigo”, explicou Carlos Vilarinho sobre os acontecimentos entre o
camisa dez e o técnico.
André
Siqueira ressaltou que mídia não tratou o fato com isenção:
“O
episodio foi um dos mais amplificados e distorcidos por setores da mídia.
Nenhuma chance do João deixar Pelé de fora do time, nem que só tivesse um olho.
Ele adorava o Pelé e sabia do talento e da força do melhor jogador do mundo.
Entrevistei o Pelé para o meu livro e sei que ele também gostava do João”.
Em depoimento a TV Brasil, no programa Mundo da
Bola, em 02 de julho de 2017, o atleta do século, segundo o jornal francês
L’Equipe , falou sobre Saldanha: “Estávamos juntos na Seleção Brasileira e ele
(Saldanha) tinha uma grande capacidade de unir o grupo. Ele disse que eu tinha
miopia e eu tinha mesmo”.
Para
Battaglia o capítulo derradeiro da demissão foi um programa na TV Globo: “O
Armando Nogueira fez criticas fundamentais ao técnico no que se refere à parte
tática, e acima disso, vir a publico para dizer que “Pelé estava enxergando
mal” ".
O
bairrismo entre a imprensa Carioca e paulista teve interferência na
continuidade do trabalho na Seleção Brasileira. Juca Kfouri lembrou que os
veículos de comunicação nunca deixaram de criticar João Saldanha:
“principalmente em São Paulo, talvez por ciúme”.
Vilarinho ressaltou: - A imprensa mantinha com
Saldanha uma relação de amor e ódio. Quando ele assumiu o escrete, a imprensa
paulista cuspiu fogo. Por exemplo, o Jornal da Tarde deu em manchete: “Nós
perdemos a Seleção”. A Gazeta deu em primeira página: “João Saldanha,
jornalista carioca e técnico por acaso”. Saldanha costumava reagir às
provocações dos repórteres com ironia e deboche. Em agosto de 1969, na
Colômbia, chegou a prometer que não daria mais entrevistas.
Sonia
lembra que o pai tratava com desprezo os jornalistas que utilizavam de outros argumentos
para criticá-lo. "Ele (Saldanha) tinha o temperamento muito forte. Não
aceitava as provocações dos “coleguinhas”. A sua escolha já desagradou a todos.
Na hora do jogo não mudava o esquema, não fazia mistério. Isso é papo para
vender jornal. Ele tinha tudo na cabeça”, diz a saudosa filha.
Carlos
Alberto Parreira, técnico campeão do mundo pela Seleção Brasileira em 1994,
fazia parte da comissão técnica em 1970, como auxiliar do preparador físico,
atendeu ao repórter por telefone.
Parreira
estava em Londres e teve o sono interrompido, mas atendeu a ligação com
educação e cortesia. Carlos Alberto elogiou a capacidade de Saldanha de unir o
grupo e a sua capacidade de comunicação. Em contrapartida disse que o
esquema tático de Zagallo melhorou o coletivo do time.
Zé
Maria, então jogador do Corinthians, lateral direito reserva de Carlos Alberto
Torres na Copa de 70, confirma a simpatia dos jogadores por Saldanha, mas
discorda de Parreira sobre a parte
tática: “Nós adorávamos o João. A definição do time titular e a cobrança dos
jogadores reservas para uma melhora técnica deixou todos tranqüilos. Além
de deixar o esquema mastigado para o Zagallo”.
Segundo Carlos Vilarinho, Armando
Nogueira também comentou as alterações táticas entre Zagallo e Saldanha: “A
alteração de estrutura em relação ao comando anterior, de João Saldanha, é
clara, pois, enquanto a orientação dada até aqui destacava a agressividade com
finesse, daqui em diante, o padrão ofensivo deverá ser substituído por uma
cautela que talvez transforme em contra-atacantes os atacantes da equipe”.
“Meu pai recebeu alguns
jogadores, entre eles, Gérson, Brito que foram ser solidários e papai pediu
para eles não tomarem nenhuma atitude que poderia prejudicá-los”, retratou
Sonia Saldanha logo após a demissão de João.
O ex-jogador Zé Maria lembrou que Saldanha
despediu-se individualmente de alguns jogadores com palavras de encorajamento.
Em abril de 1969, Antônio do Passo
havia declarado: “Estão enganados aqueles que pensavam que Zagalo seria o
técnico, caso Saldanha não aceitasse o convite. O treinador seria Yustrich,
sendo Zagalo o terceiro nome de minha lista”.
“No dia 17 de março, entretanto,
Yustrich foi descartado - para grande decepção dele e do Flamengo – pois quando
surgiram os boatos de que ele poderia assumir, os jogadores disseram que se ele
fosse o escolhido “arrumariam as malas e cada um iria para sua casa””, afirmou
Vilarinho.
Yustrich é um caso a parte na
história da demissão de Saldanha. Vilarinho detalha o “incidente” com então
treinador do Flamengo: “Yustrich, era um agente provocador fascista. No dia 12
de março de 1970, ainda irritado com o cancelamento do amistoso contra o
Flamengo (marcado para o dia 15), Saldanha recebeu de Antônio do Passo a
notícia da marcação de um jogo-treino contra o Bangu, no dia 14. Entretanto,
chegaram ao seu conhecimento os novos insultos de Yustrich, publicados na
imprensa de São Paulo e da Guanabara. À noite, armado com um revólver, Saldanha
invadiu a concentração rubro-negra para tirar satisfações, mas não o encontrou.
Na sexta-feira, Saldanha só não agrediu um repórter porque foi contido por outros
jornalistas. No sábado (dia 14), jogando de forma displicente, o Brasil só
empatou com o Bangu: 1x1. No mesmo dia, Yustrich deu o caso por encerrado, mas
avisou: “O Exército pode até intervir na Seleção”. Sua fonte era
"quente". "De fato, Jarbas Passarinho (ministro da Educação)
determinou a um dos auxiliares da preparação física (o capitão Cláudio
Coutinho) que assumisse o lugar de Russo e lhe disse que a comissão ia ser
trocada, pois já tinha acertado tudo com Havelange”.
Dino Sani, amigo de Saldanha e
técnico do Corinthians, em 1969, foi o primeiro nome a ser cogitado para ocupar
o lugar de Saldanha. “Eu não quis pegar o emprego, pois ele (Saldanha) era meu
amigo, a amizade era boa. O Saldanha disse pra mim que deveria ter aceitado ”.
Outra preocupação dos militares, caso
João Saldanha tivesse ficado no cargo e conquistasse o tricampeonato mundial o
que poderia significar o título para no Brasil?
Vilarinho tem uma pergunta para
buscar a resposta: “Há quem diga que Saldanha foi demitido porque nunca
permitiria que os jogadores subissem a rampa do Palácio do Planalto para um
encontro com Médici. Trata-se de uma enorme tolice, pois técnico algum teria
esse poder. Todas as vezes que a seleção brasileira conquistou a Copa do Mundo,
os jogadores, assim que voltaram ao Brasil, foram recebidos pelo presidente da
República, fosse ele civil ou militar. E Saldanha? Teria se recusado a subir a
rampa? Ninguém sabe a resposta.”
“Um comunista histórico conquistando
uma Copa do Mundo e denunciando a ditadura teria muita força, principalmente no
exterior. Mas acho que esse era um pensamento secundário. Ele aceitou o
desafio, realizou um trabalho brilhante, seriamente, inquestionável, e queria
ganhar a Copa, claro. Mas sabia que teria um canhão na mão contra os
militares”, refletiu André Siqueira.
Quem derrubou João Saldanha do cargo
de técnico da Seleção Brasileira ficará para a conclusão do leitor. Sonia
Saldanha faz uma síntese (substantivo do qual o pai era mestre nos seus
comentários no rádio e na TV ou nas suas colunas nos jornais), sobre a falta
que João Saldanha faz: “Nenhum jornalista será igual a ele”.